sábado, 16 de julho de 2022

Sobre cristãos fãs de Jair Bolsonaro


O presente ensaio "popular" foi escrito após reflexão sobre o fenômeno de muitos cristãos praticantes se declararem "Bolsominions": fãs e seguidores do presidente Jair Bolsonaro. Por se tratar de um assunto mais brasileiro, não farei uma versão em inglês. Para ouvi-lo, há uma versão em áudio lida por mim que pode ser acessada clicando aqui.

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No segundo turno das eleições de 2018, os eleitores brasileiros tiveram que escolher quem os governaria nacionalmente pelos próximos quatro anos: se seria Fernando Haddad pelo Partido dos Trabalhadores ou Jair Bolsonaro pelo então Partido Social Liberal.

Naquela ocasião, ficou bem visível que muitos dos que votaram no atual presidente não o fizeram porque o aprovavam, mas porque não queriam o PT de volta ao poder. E isso não foi de graça: afinal, essa alternativa já havia governado ao longo de 13 anos e veio a protagonizar não apenas uma sequência de escândalos de corrupção (com destaque ao Petrolão, provavelmente o maior de nossa história), como também uma má administração tal que nos levou à pior década da nossa economia em 120 anos já antes da pandemia. 

Assim, parece que votar em Bolsonaro naquele ano estava longe de ser uma decisão impensável, injustificável, irracional. Porém, o que nunca consegui aceitar como plausível é a existência de uma grande quantidade de fãs que o presidente conquistou para si. Pior ainda é como que tantos permanecem seus fãs até agora, mais de 3 anos depois das eleições, com tudo o que este fez de lá pra cá. Porém nem isso supera o que vejo como ainda mais sem cabimento: que muitos destes são cristãos praticantes, membros ativos em igrejas e leitores da Bíblia. 

Aqui cabe a nota de que estou "mirando" nos cristãos desse "tipo" porque se estes fossem assim só de fé, então seria mais aceitável já que tais mal conhecem a religião que professam e não parecem querer viver de acordo com ela. Porém esse não é o caso de uma grande parte dos assim chamados "Bolsominions", um apelido dado pela crítica com uma clara referência aos personagens amarelos da animação "Meu Malvado Favorito" caracterizados por idolatrarem e cegamente seguirem um vilão, comportamento associado a muitos fãs do presidente.

Bom, esse fato (o de que Bolsonaro possui muitos fãs sendo muitos destes cristãos praticantes) clama por respostas: o que fundamenta o posicionamento destes crentes? Será que há uma maneira plausível desse posicionamento ser justificado? Será que cristãos deveriam ser "Bolsominions" ou há algo de errado quanto a isso?

Na busca pelas respostas a essas questões, talvez um bom começo seria conhecer os argumentos dados pelos próprios fãs em defesa de seu comportamento. Aqui parece haver uma razão básica compartilhada pela maioria: a de que faz sentido ser fã de Jair Bolsonaro por conta dele possuir toda uma lista de supostas boas características tais como: sua posição contra o comunismo e o PT, ser um defensor da família e contra a descriminalização do aborto, sua honestidade, incorruptibilidade e afins.

Porém já aqui nós temos um problema: mesmo que todas essas características fossem verdadeiras, isso por si só não justifica alguém ser fã do presidente. Afinal, enquanto é plausível que a aprovação e admiração a um indivíduo envolva as suas qualidades e atos positivos, é evidente que também deve envolver o seu lado ruim!

Tomemos Adolf Hitler, um homem lamentável ao qual a maior parte da humanidade tem a decência de não ser seu fã. Se nós fôssemos ignorar tudo de ruim que diz respeito a ele, então o que sobraria seria uma lista de coisas neutras ou positivas. Ora, agora haveríamos nós de considerar virarmos fãs do cabeça do Holocausto porque ele foi bom amigo de alguns, avançou na criação das Autobahns alemãs e sabia pintar aquarelas?! Mas é claro que não! Fazer isso seria implausível justamente porque não faz sentido decidir se posicionar sobre uma pessoa olhando só para as coisas positivas que ela tem ou fez; é o conjunto INTEIRO da obra que importa. E é no momento que analisamos o todo de Hitler que chegamos à óbvia conclusão de que ele foi um ser lamentável o qual jamais deveríamos admirar.

Pois o mesmo se aplica a Bolsonaro: não faz sentido só olhar para as suas ditas qualidades e querer justificar admiração a partir disso; é necessário que todo o conjunto seja analisado, logo incluindo o seu lado negativo. E quanto a este, é público que está longe de ser pequeno ou trivial

Porém não vou aqui fazer toda uma lista de seus pontos ruins já antevendo uma possível resposta: a de que "nenhum humano é perfeito". Por essa ótica, apontar que Bolsonaro tem defeitos em nada demonstra que ele não é digno de ter fãs. Talvez diriam: "Se o sujeito não pode ter defeito para poder ser admirado, então só o perfeito Jesus poderá ser admirado!". Na medida que for o caso que humanos falhos podem ter fãs, isso nos leva à pergunta: qual a medida de defeitos que define que tipo de problemas uma pessoa pode ter sem que isso a torne indigna de admiração? Quando que seus erros já contam como sendo demais?

No meio secular, talvez isso não tenha uma resposta muito clara, porém o mesmo é diferente para quem é cristão. Isso ocorre porque a Bíblia tanto reconhece que todos são falhos e pecam quanto expõe casos em que o sujeito "cruzou a linha", "sentando-lhe o laço" da reprovação.

Tomemos os fariseus. Jesus convivia "de boas" com "publicanos e pecadores", porém com aqueles era indignação atrás de indignação. E o que estes fariseus faziam de tão errado para estressar aquele "manso e humilde de coração"? De tudo, o que mais se destacou foi a sua hipocrisia: eles se apresentavam para o público como santos e fiéis seguidores de Moisés, interessados em cumprir seus estatutos com tanta fidelidade até nos pormenores da Lei ("coavam os mosquitos"), porém, por dentro, eram podres não guardando os principais ensinamentos de Deus, "o juízo, a misericórdia e a fé". Afinal, quando quiseram matar Jesus, descumpriram os preceitos legais e deram um jeito de fazer o que bem queriam passando por cima daquilo que diziam fielmente seguir. A palavra "hipócrita" resume isso bem: alguém que não é apenas pontualmente incoerente, mas um falsário, que se apresenta como sendo de um jeito, porém na verdade é de outro. E esse comportamento nos remete a Romanos 2 onde Paulo condena aqueles que praticavam as próprias coisas que publicamente condenavam concluindo que "por causa destes, o nome de Jesus é maldito entre os gentios". Ou seja, Paulo reprovou fortemente aqueles que diziam que fazer "isso e aquilo" era errado e não deveria ser feito para, logo após, estarem eles próprios fazendo tudo o que condenaram.

Agora consideremos o que diz a primeira parte de 1º Coríntios 13: que se alguém falhar no amor, ele será basicamente um nada, um lixo, não importando quantas outras qualidades ele venha possuir. O amor é tão importante no Cristianismo que Jesus chegou a dizer que seus discípulos seriam reconhecidos por ele. Bom, é claro que todos nós falhamos no amor (provavelmente só Jesus amou perfeitamente), porém há uma diferença a ser notada nos excessos: há diferença entre falhar de vez em quando e falhar o tempo todo; de falhar no detalhe versus grosseiramente; de ser alguém que ama como regra e erra na exceção de alguém que é tão ruim em amar que não é possível associar essa pessoa ao amor; de não amar no pensamento, mantendo sua postura, a extravasar seu coração escuro em suas palavras e ações; de amar a maioria e falhar na minoria versus não amar até metade de um país inteiro! Assim, pequenas e pontuais falhas no amor são aceitáveis na caminhada moral árdua de um cristão, porém falhar miseravelmente neste item não é só mais um pecado; é simplesmente viver o avesso, o extremo oposto do que um seguidor de Cristo deveria viver!

Com tudo isso, pode-se dizer que se uma pessoa possui um perfil com as características recém mencionadas, então tal está longe de ser digna de admiração por um cristão. Um descrente com um perfil assim já seria deplorável, mas pelo menos seria compreensível já que o mesmo não está submetido aos ensinos de Jesus, ao acompanhamento pastoral e a comunhão fortificadora da comunidade fiel. Pois será ainda pior alguém que for assim enquanto professa ser um crente em Cristo! Aliás, pode-se dizer que tal fiel seria o exemplo de tudo o que um cristão deve almejar NÃO ser: alguém que afirma ter Jesus em sua vida, tê-lo por Salvador, porém vive de forma oposta a Ele, dando um péssimo testemunho e inevitavelmente envergonhando o Seu nome.

O problema é que Jair Bolsonaro se encaixa nisso perfeitamente bem! Já antes de sua campanha eleitoral e ainda mais claramente durante e após essa, o presidente tem sistemicamente sido o oposto do que se espera de um cristão (e de maneira pública, à descoberto, de tal forma que qualquer interessado em se informar e com acesso à Internet consegue saber). Consideremos primeiro a duplicidade entre apresentação e ação:
  1. Foi crítico de uma série de práticas do governo petista, porém, uma vez eleito, repetiu essas mesmas práticas. Por exemplo:
    1. criticou o mensalão, a compra de votos parlamentares para apoiar propostas, e depois fez o "Bolsolão" onde abusou de emendas parlamentares para comprar apoio do Congresso (visivelmente em parte para escapar de um plausível impeachment);
    2. repudiou o toma-lá-dá-cá com o "Centrão", a prática de negociar cargos em troca de favores, chegando a efetivamente anunciar o seu fim, e depois acabou fazendo a mesma coisa negociando cargos e apoios com o bloco;
    3. criticou programas populistas como o Bolsa Família, acusado de ser compra de apoio político pela barriga, mas uma vez eleito não só não o eliminou, como o ampliou e o renomeou (com esta última ação sugerindo uma tentativa de associar o programa a ele e não mais ao partido criador).
  2. Também contrariou características plausivelmente negativas do Estado brasileiro e depois pouco ou nada fez contra elas. Exemplos são:
    1. o excesso de foro privilegiado, ao qual nada fez para eliminar (condição que aparentemente beneficiou familiares envolvidos em acusações de corrupção);
    2. a corrupção pública, tendo apoiado a operação Lava Jato que escancarou os crimes cometidos por muitos políticos como o ex-presidente Lula, e que recebeu pouca atenção do seu governo: dissecou o pacote de leis sobre o assunto criado pelo ex-ministro da justiça Sérgio Moro e abandonou a Lava Jato que tanto defendera, operação esta que acabou envolvendo familiares e que efetivamente terminou em seu mandato;
  3. Contrariando seu histórico, defendeu uma agenda econômica mais liberal, e embora tenha cumprido em parte o prometido (como em fazendo privatizações, ainda que lentamente), não deixou de fazer bastante gestão antiliberal e populista da economia como no caso das várias mexidas na diretoria da Petrobrás.
  4. Ainda no tocante à corrupção, afirmou ser mentira que "acenava para corruptos e condenados" numa ocasião envolvendo uma possível associação ao condenado pelo Mensalão Valdemar C. Neto, porém quando chegou a hora de escolher um partido para continuar no poder via reeleição, acabou por "acenar para corruptos e condenados" filiando-se ao PL daquele político.
  5. Colocou-se como um "defensor da verdade" e crítico de inverdades em várias ocasiões, como quando citou o versículo "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" em seu Twitter, porém teve todo um governo marcado por mentiras, desinformações e propagação de fake news.
Outros itens poderiam ser incluídos, mas quero evitar estender o ensaio demasiadamente. O ponto aqui é que Bolsonaro praticou muito do que havia anteriormente condenado, sistemicamente apresentando uma imagem num primeiro momento para agir diferente depois incluindo no tocante a propostas de governo (no linguajar político, praticou estelionato eleitoral). Só isso já deveria deixar cristãos avessos ao presidente tal qual Jesus foi aos fariseus ou Paulo aos judeus por ele criticados.

Porém, o pior talvez nem seja isso, mas o quanto que Bolsonaro em nada tem a ver com a marca cristã do amor. Desde antes das eleições e até agora, talvez a coisa que o presidente menos mostrou foi esse "carimbo de Jesus". Seja no tratamento dado à esquerda (que é quase metade do Brasil), na sua relação com a parte da imprensa que não lhe é favorável, seja no tratamento às vítimas da pandemia, o presidente se mostrou tão sem amor, antes cheio de ódio e desprezo, em especial para os que não lhe aprovam, que houve psicanalista que chegou a sugerir que ele possa ter psicopatia, o traço comportamental em que há falta de remorso ou empatia para o seu semelhante. Enquanto Cristo nos chamou a amar como Ele amou, i.e., a todos, sem condições e intensamente, o comportamento de Bolsonaro parece seguir a linha incompatível de "apreço aos apoiadores e o resto que se exploda".

Com tudo isso na mesa, não é à toa que a única defesa que seus seguidores conseguem dar para respaldar algum Cristianismo neste sujeito é apontando para trivialidades da fé como suas menções à Deus, meia dúzia de orações públicas, ter uma esposa evangélica e participar de caminhadas cristãs, porque no resto da sua vida o que talvez menos se encontre é Jesus!

Com tudo isso em mente, o que se pode concluir é que mesmo se Jair Bolsonaro for digno de vários dos elogios que seus fãs lhe atribuem, ainda assim ele possui um perfil que está longe de merecer admiração daqueles que professam Cristo em suas vidas. E se é assim já lhe concedendo elogios, imagina se nem estes forem realmente dignos! Se nem na melhor das hipóteses temos algo aprovável, então como que fica na pior delas?!

Concluo essa mensagem notando que em nenhum momento procurei defender que cristãos (e mesmo pessoas em geral) não devem votar no presidente nas atuais eleições ou mesmo em futuras. Ao meu ver, por pior pessoa e candidato que ele seja, ainda é possível que haja voto adequado nele bastando as alternativas serem piores (ainda que, ao meu ver, para alguém conseguir ser um candidato pior do que Jair é preciso esforço!). Minha conclusão aqui é que não há motivo sensato para um cristão ser fã deste indivíduo tendo em vista como ele tem sido. E se estiver correto nessa minha conclusão, então é plausível que o grande suporte da cristandade brasileira a Bolsonaro é mais um triste capítulo da história da Igreja.

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